A figura do
invertido encontrada na antiguidade, que desde há muito tempo –
parafraseio Foucault –“desperta uma repugnância ao
seu respeito, por marcar uma renúncia
voluntária aos prestígios e as obrigações
do papel viril.” Quais os critérios morais e éticos que determinam o
limite desses corpos e
sua sexualidade?
O
corpo viril encontra-se rebaixado já desde
antiguidade, como podemos verificar em
escritos filosóficos encontrados entre os
séculos IV e V a.c,
esses escritos
nos mostram o espectro desse rebaixamento,
numa sociedade onde as relações de
amizade eram respeitadas, segundo alguns critérios na prática da
pederastia, é o caso de Xenofonte,
Aristóteles e posteriormente
Plutarco, para citar alguns exemplos de filósofos que relacionam
as condutas
sexuais como
concernentes à moral e ética nesse
momento. O que
podemos tomar de imediato é que o corpo masculino responde ao
arquétipo da virilidade, a ideia de homem (sexo masculino)
corresponde a uma série de atributos que o
qualificaria como um “ator ativo no cenário dos prazeres”, é um
jogo entre sujeito e objeto em termos foucaultianos, sendo que, como
homem o sujeito não deve se por como objeto, por uma simples razão;
isso seria rebaixar a própria natureza,
posto à similaridade
com o papel de
objeto conferido a mulher,
não se deve assumir
“o prazer
obtido em ser objeto”.
Esse homem
mesmo na tradição pederasta é nesse modo
de ser, o sujeito de uma
conduta vergonhosa,
encontrada como
“antinatural”, ou ainda, “repulsiva”
e “bestial”.
Em
O cuidado de si Foucault percebe que:
“Toda uma reflexão moral sobre a
atividade sexual e seus prazeres, que parece marcar, nos dois
primeiros séculos de nossa era,[...] uma
certa desqualificação doutrinal que parece recair
sobre o amor pelos rapazes.” (FOUCAULT,
p.231, 2005). A
moral das condutas sexuais
(aphrodisia)
tomada pelos
antigos gregos como uma possibilidade de
elevar a alma dos homens, abolia
de uma posição moralmente
virtuosa
o amor pelos rapazes, se
a
amizade em questão fosse participante
dos aphrodisia, ou
seja, para que fosse virtuosa, a amizade não se
deveria relacionar
à prática sexual, já que se a relação entre dois homens fosse
consentida pelo “ator passivo” então era vergonhosa para
este,
em contrapartida, se somente a parte ativa
tomasse prazer na relação, então a outra parte não se
beneficiando do ato, não frutificaria daí nenhum bom sentimento, o
“dilema do erônemo” se faz dessas duas situações.
O
sexo dispendioso da
relação homoerótica é marcado por prescrições filosóficas e
médicas, tanto pelos indicativos de corrupção da alma, quanto pela
corrupção
corpo. É
possível perceber um movimento que vai reafirmando as práticas
homoerótica como a contrapartida da austeridade viril, trata-se de
uma
relação moral entre
virtude e vergonha, uma
relação que permeia também a figura masculina na sociedade
moderna.
Foucault
mostra em O
cuidado de si, através
de algumas
prescrições da filosofia antiga, princípios gerais que organizavam
na época clássica a experiência moral dos aphrodisia,
encontramos vinculados às práticas sexuais uma certa reserva, uma
certa precaução. O
sexo foi tomado por filósofos e médicos
da era clássica “como perigoso, difícil
de ser dominado e custoso; a medida exata de sua prática possível e
sua inserção num regime atento, foram exigidas desde há muito
tempo.” (FOUCAULT, p.233,2005).
Essas considerações estão diretamente ligadas
à dietética do corpo e do uso dos prazeres prescritos,
para que se
pudesse manter,
ou acender por
meio dessas práticas de si à
austeridade através
das relações de amizade, uma certa
hipocrisia que prevê manter a integridade da alma
a salvo dos vícios da carne, não deixando
que a amizade e todas as
virtudes que dessa relação possam brotar,
sucumbam ao
desejo referente aos aphrodisia.
O ato sexual é desse aspecto negado ou ao menos disfarçado nas
relações de amizade, e a relação entre
homem e mulher passa de maneira progressiva à formar-se como a única
legitima e austera. Foucault
não deixa de nos lembrar que com a
formação do antigo
cristianismo e
seus mecanismos que nos fizeram detestar o corpo,
o sexo (e
a sexualidade) em seu modelo “legítimo”
toma maiores proporções, ele
nos mostra também que
a partir do século
XIX, houve uma
mudança determinante para a história da
sexualidade: a
construção dos dispositivos da sexualidade e uma teoria geral do
sexo.
Foucault
em A vontade de saber
dizia a respeito de um
processo ocorrido na moral sexual no
século XIX, que se estende à sexualidade
moderna “um rápido crepúsculo que, se
teria seguido à luz meridiana, até as noites monótonas da
burguesia vitoriana”. Isso quando a sexualidade é confiscada pela
conjugalidade dos sujeitos, ganha então, um sério aspecto de
legitimidade, pela prática matrimonial puramente reprodutiva, foi
nesse momento que ocorreu intensificação
da naturalização do sexo, família
conjugal o confisca.“O que
não é regulado para a geração, ou por ela transfigurado não
possui nem eira nem beira, nem lei. Nem verbo também. É ao mesmo
tempo expulso, negado e reduzido ao silêncio. Não somente não
existe, como não deve existir e à menor manifestação fá-lo-ão
desaparecer.” (FOUCAULT,
p.8,
1998).
Por
que o nosso comportamento sexual está para nós como objeto de
preocupação moral, de um certo cuidado ético tão
intenso? É essa reflexão que conduz Foucalt em O
uso dos prazeres,
uma questão que
está para além de uma interdição geral da sexualidade, “ocorrendo
frequentemente que a preocupação
moral seja forte, lá onde precisamente não há obrigação, nem
proibição.(FOUCAULT,
p.14, 1998).
Esse
movimento parte do sujeito, do sujeito desejante, que relaciona essa
problematização das condutas sexuais a um conjunto de práticas
referidas por Foucault como “artes
da existência”, ou ainda, “técnicas de si”: “Deve-se
entender, com isso, práticas refletidas e voluntárias através das
quais os homens [...] procuram se transformar, modificar-se em seu
ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de
certos valores estéticos e responda a
certos critérios de estilo.” (FOUCAULT, p.15, 1998).
Foucault
parte do princípio de que uma hipótese repressiva das interdições,
não seria por acaso, o único fator de problematização moral do
comportamento sexual, levanta
para tanto, uma
genealogia do desejo, ou, se preferir, do sujeito desejante: é a
proposta de uma hermenêutica
do desejo,
que “busca analisar as práticas pelas quais os indivíduos foram
levados a prestar atenção a eles próprios,[...]
estabelecendo de si para si uma relação que permite
descobrir no desejo a verdade de seu ser, seja ela natural ou
decaída.” (
FOUCAULT,
p.11,
1998).
Foucault
dá
a chance de colocar a
sexualidade no
campo de uma
experiência do
sujeito capaz de inventar-se a si mesmo:
“se entendermos por experiência, a correlação numa cultura entre
campos de saber, tipos de normatividade e formas de
subjetividade.”(FOUCAULT,
p.11,
1998).
Em
O
cuidado de si
Foucault dá ao sujeito a necessidade de se conduzir segundo sua
própria sexualidade: “A Moral sexual exige, ainda e sempre, que o
individuo se sujeite a uma certa arte de viver que defina os
critérios
estéticos e éticos da existência.” (FOUCAULT,
p. 72, 1998).
Em
A
hermenêutica do sujeito
curso ministrado
em
Collège de France
entre 1981e
1982,
tem como pontos principais a problematização moral das
práticas e prazeres sexuais na antiguidade os
aphrodísia,
e
como contraponto põe a moral judaico-cristã, que é a base da moral
sexual da sociedade ocidental moderna. Foucault se muni de um termo
bastante rico das sociedades antigas Epiméleia
heautou, traduzida
pelos latinos como cuidado de si mesmo.
“ocupar-se
com si, preocupar-se com si etc.”
Ele ocupa-se a partir daí de traçar a relação entre a prescrição
délfica gnôthi
seautón (o
“conhece-te a ti mesmo”), e o cuidado de si”.
As
referidas
“técnicas de si”, que
na antiguidade guiam ao encontro da virtude
perdem
força e autonomia, quando ao serem integradas ao cristianismo e
depois ao longo do tempo, quando submetidas às instituições
educativas, médicas e psicológicas, que
transferem o cuidado que se deve ter consigo mesmo, por um cuidado
que se deve ter com o próprio corpo, talvez
obedecendo ao mesmo uso que se faz hoje da palavra estética.
Da
amizade pode-se dizer que ela foi sofrendo alterações, já
em alguns filósofos antigos vemos as prescrições das condutas
sexuais dirigidas às
relações heterossexuais na conjugalidade, a partir do cristianismo
essa posição toma mais força, podemos ver hoje o impacto
normatização das relações sexuais.
A amizade foi
sendo restringida aos poucos das condutas socialmente aceitas, até
enfim, ser banida totalmente dos modos possíveis de se conduzir a
vida.
Sobre
esse aspecto podemos evocar ainda um outro Foucault, aquele
que desloca o tema da amizade da
antiguidade para
um tempo mais próximo ao nosso, em
entrevista publicada no ano de 1981, Foucault fala ao
jornal
Gai Pied, já no inicio da entrevista, sobre “o
movimento homossexual ter
mais necessidade hoje de uma arte de viver, do que de uma ciência ou
um conhecimento científico (ou pseudocientífico) do que é a
sexualidade.” (FOUCAULT,
p.260, 2004).
Foucault
segue, e dá a
sexualidade um status privilegiado, a partir do conceito de desejo, a
possibilidade de uma vida criativa, um fazer-se, um construir-se, de
modo a produzir uma obra:
“A sexualidade
faz parte de nossa conduta. Ela faz parte da liberdade em nosso
usufruto deste mundo. A liberdade é algo que nós mesmos criamos —
ela é nossa própria criação, ou melhor, ela não é a descoberta
de um aspecto secreto de nosso desejo. Nós devemos compreender que,
com nossos desejos, por meio deles, instauram-se novas formas de
relações, novas formas de amor e novas formas de criação. O sexo
não é uma fatalidade; ele é uma possibilidade de aceder a uma vida
criativa .” (FOUCAULT,
p.260,
2004).
Nesse
sentido é possível afirmar, ainda nessa fala de Foucault,
que a liberação sexual é ponto de formação da obra de arte, da
criação de novos modos de vida, é nesse ponto e do espaço de um
estilo de vida homossexual, que essa liberação vem a ser potência
criativa:
“Forçosamente
constatamos que a sexualidade tal qual a conhecemos hoje, torna-se
uma das fontes mais produtivas de nossa sociedade e de nosso ser. Eu
penso que deveríamos compreender a sexualidade num outro sentido: o
mundo considera que a sexualidade constitui o segredo da vida
cultural criadora; ela é mais um processo que se inscreve na
necessidade, para nós hoje, de criar uma nova vida cultural, sob a
condução de nossas escolhas sexuais” (FOUCAULT,
p. 261, 2004).
Devemos
nos lembrar sobre a
liberação sexual decorrente
dos anos 60, que
desde a descoberta do vírus HIV nos anos 80 houve um retrocesso das
conquistas geradas nesse período de revolução sexual, a epidemia
que logo foi associada ao estilo de vida gay gerou retrocessos morais
no imaginário coletivo:
“A epidemia mudou não apenas o cenário da época, mas
também impulsionou mudanças culturais que sepultaram as – hoje
sabemos – frágeis conquistas da então chamada Revolução
Sexual.” (MISKOLCI, p.47, 2011). Muito similar ao processo ocorrido
no século XIX com o progressivo crescimento de casos de sífilis,
homossexuais assim como prostitutas passam a “concentrar em si”
todas as ameaças que pesam sobre o corpo, a degenerescência e a
regressão, essa aproximação entre doenças sexualmente
transmissíveis e personagens marginais da sociedade, tanto no século
XIX como no século XX altera o olhar sobre os corpos e marca a
história dos corpos desejados, aproximando o prazer à morte e
reafirmando o rebaixamento de corpos que já se encontravam
marginais.
Com
a AIDS houve um retrocesso do processo de despatologização das
identidades sexuais, um impulso na marginalização dessas
identidades decaídas, onde existe todo um problema em torno das
sexualidades que possam (a partir de uma “imoralidade”)
representar riscos à saúde pública.Os homossexuais arcaram com o
estigma da AIDS, prostitutas e os michês receberam atenção dos
órgãos públicos, os homossexuais e ai se incluem os michês, (a
partir de uma conduta homossexual) foram transcritos como sinônimos
de devassidão, peste e promiscuidade venérea.
“[…] No
Brasil, algo diverso ocorreu. Em meio ao processo de redemocratização
do país, o então movimento homossexual brasileiro (MHB) conseguiu
estabelecer um diálogo com o Estado na criação daquele que talvez
seja o melhor programa assistencial de aids do mundo, resultando em
uma situação invejável por outros contextos nacionais, mas também
marcada por cooptação.” (MISKOLCI,
p.49,
2011).
A
AIDS reconfigurou as relações de respeitabilidade sexual e
por tanto, dos corpos desejados,
e funcionou como radicalizador da imagem do aidético, a
amizade foi novamente banida
das relações aceitas, a
imagem do homossexual ganha novo aspecto aberrante e por fim, o sexo
que já começava a se
liberar, rompendo com o estigma do matrimônio
volta a ser encarcerado. A liberação sexual deixa de ser gradual e
passa a ser reprimida, é por
que “reside na liberação sexual
um risco à saúde pública”:
“Neste novo
contexto, o dispositivo histórico da sexualidade passou por uma
inflexão que reforçou a imposição da heteronormatividade, um
conjunto de instituições, estruturas de compreensão e orientação
prática que se apoiam na heterossexualidade mantendo sua hegemonia
por meio da subalternização de outras sexualidades, às quais impõe
seu modelo.[...] A proposta foucaultiana de uma estética da
existência ganha novos elementos e exige refletir sobre as promessas
e os dilemas da relação entre subjetividade e ética na sociedade
contemporânea.” (MISKOLCI, p.50, 2011).
Após
as mudanças decorridas da AIDS e todos os seus retrocessos, já
conseguimos conviver com a doença, a rotina sexual mudou para todos
e gira em torno desse cuidado com o próprio corpo, após a
desmitificação da doença, todos sabem que o HIV não decorre de
um estilo de vida homossexual. Porém
vale dizer: o corpo homossexual
ainda é
evidentemente associado à promiscuidade venérea e
à baixeza que perturba a masculinidade, o
rebaixamento da virilidade, tal como a
figura da travesti e da transexual, que hoje se descolam do status
homossexual, mas que tal como este, renunciam voluntariamente ao seu
papel viril. Nos faz pensar ainda, qual o
aspecto moral do corpo que abre mão de sua
virilidade, dispondo-se como objeto de outro homem, e por vezes
renunciando à estética viril?
A antiguidade tratou da virtude na amizade,
mas condenou também o prazer sexual entre dois homens,
àquele cuidado de si, aquelas referidas
práticas do cuidado de si mesmo que conferiam à alma um local
privilegiado, foram
modificadas e
passaram
a dar ao corpo um lugar mais importante que
destinado a alma,
a medicina super valorizou o sexo, modificou à sua maneira as
dietéticas, e teve grande contribuição nessa modificação do
referido cuidado
de si, “O face-a-face consigo se tornou
um face-a-face com um corpo em relação ao qual não podemos tomar
distância alguma.” (MICHAUD,
p.554, 2009). O
século XIX desenvolveu uma teoria geral do sexo e introjetou na
história da sexualidade a vontade de saber sobre o “segredo
essencial” do sexo, e por fim o corpo vem tomar esse lugar primeiro
na constituição do sujeito e nos seus modos de vida. A
virtude estóica pautada na
saúde da alma abre espaço para o corpo na experiência sexual
moderna, é através dele que devemos zelar por nossa vida, é ele
nossa força de trabalho e também nossa grande verdade, nosso objeto
de arte e de desejo. Focault defende que nossa resistência deve
partir dos corpos e dos prazeres e não do sexo-desejo.
Ao fim de A vontade de saber
Foucault dizia
que o sexo se tornou mais importante que a
alma, ou até mesmo que a própria vida, Yves
Michaud diz que é o corpo quem hoje ocupa
esse espaço:“Estamos
doravante diretamente diante do corpo e do sexo […]
onde havia consciências, almas, fantasias, e desejo, só resta um
corpo com suas marcas[...]: o corpo se tornou mais importante que
nossa alma- tornou-se mais importante que nossa vida.” (MICHAUD,
p.
564-565,
2009).