terça-feira, 31 de março de 2015

Do invertido ao michê bicha: aspectos de um corpo rebaixado.


A figura do invertido encontrada na antiguidade, que desde há muito tempo – parafraseio Foucault –“desperta uma repugnância ao seu respeito, por marcar uma renúncia voluntária aos prestígios e as obrigações do papel viril.” Quais os critérios morais e éticos que determinam o limite desses corpos e sua sexualidade?
O corpo viril encontra-se rebaixado já desde antiguidade, como podemos verificar em escritos filosóficos encontrados entre os séculos IV e V a.c, esses escritos nos mostram o espectro desse rebaixamento, numa sociedade onde as relações de amizade eram respeitadas, segundo alguns critérios na prática da pederastia, é o caso de Xenofonte, Aristóteles e posteriormente Plutarco, para citar alguns exemplos de filósofos que relacionam as condutas sexuais como concernentes à moral e ética nesse momento. O que podemos tomar de imediato é que o corpo masculino responde ao arquétipo da virilidade, a ideia de homem (sexo masculino) corresponde a uma série de atributos que o qualificaria como um “ator ativo no cenário dos prazeres”, é um jogo entre sujeito e objeto em termos foucaultianos, sendo que, como homem o sujeito não deve se por como objeto, por uma simples razão; isso seria rebaixar a própria natureza, posto à similaridade com o papel de objeto conferido a mulher, não se deve assumir o prazer obtido em ser objeto”. Esse homem mesmo na tradição pederasta é nesse modo de ser, o sujeito de uma conduta vergonhosa, encontrada como “antinatural”, ou ainda, “repulsiva” e “bestial”.
Em O cuidado de si Foucault percebe que: “Toda uma reflexão moral sobre a atividade sexual e seus prazeres, que parece marcar, nos dois primeiros séculos de nossa era,[...] ­uma certa desqualificação doutrinal que parece recair sobre o amor pelos rapazes.” (FOUCAULT, p.231, 2005). A moral das condutas sexuais (aphrodisia) tomada pelos antigos gregos como uma possibilidade de elevar a alma dos homens, abolia de uma posição moralmente virtuosa o amor pelos rapazes, se a amizade em questão fosse participante dos aphrodisia, ou seja, para que fosse virtuosa, a amizade não se deveria relacionar à prática sexual, já que se a relação entre dois homens fosse consentida pelo “ator passivo” então era vergonhosa para este, em contrapartida, se somente a parte ativa tomasse prazer na relação, então a outra parte não se beneficiando do ato, não frutificaria daí nenhum bom sentimento, o “dilema do erônemo” se faz dessas duas situações. O sexo dispendioso da relação homoerótica é marcado por prescrições filosóficas e médicas, tanto pelos indicativos de corrupção da alma, quanto pela corrupção corpo. É possível perceber um movimento que vai reafirmando as práticas homoerótica como a contrapartida da austeridade viril, trata-se de uma relação moral entre virtude e vergonha, uma relação que permeia também a figura masculina na sociedade moderna.
Foucault mostra em O cuidado de si, através de algumas prescrições da filosofia antiga, princípios gerais que organizavam na época clássica a experiência moral dos aphrodisia, encontramos vinculados às práticas sexuais uma certa reserva, uma certa precaução. O sexo foi tomado por filósofos e médicos da era clássica “como perigoso, difícil de ser dominado e custoso; a medida exata de sua prática possível e sua inserção num regime atento, foram exigidas desde há muito tempo.” (FOUCAULT, p.233,2005). Essas considerações estão diretamente ligadas à dietética do corpo e do uso dos prazeres prescritos, para que se pudesse manter, ou acender por meio dessas práticas de si à austeridade através das relações de amizade, uma certa hipocrisia que prevê manter a integridade da alma a salvo dos vícios da carne, não deixando que a amizade e todas as virtudes que dessa relação possam brotar, sucumbam ao desejo referente aos aphrodisia. O ato sexual é desse aspecto negado ou ao menos disfarçado nas relações de amizade, e a relação entre homem e mulher passa de maneira progressiva à formar-se como a única legitima e austera. Foucault não deixa de nos lembrar que com a formação do antigo cristianismo e seus mecanismos que nos fizeram detestar o corpo, o sexo (e a sexualidade) em seu modelo “legítimo” toma maiores proporções, ele nos mostra também que a partir do século XIX, houve uma mudança determinante para a história da sexualidade: a construção dos dispositivos da sexualidade e uma teoria geral do sexo.
Foucault em A vontade de saber dizia a respeito de um processo ocorrido na moral sexual no século XIX, que se estende à sexualidade moderna “um rápido crepúsculo que, se teria seguido à luz meridiana, até as noites monótonas da burguesia vitoriana”. Isso quando a sexualidade é confiscada pela conjugalidade dos sujeitos, ganha então, um sério aspecto de legitimidade, pela prática matrimonial puramente reprodutiva, foi nesse momento que ocorreu intensificação da naturalização do sexo, família conjugal o confisca.“O que não é regulado para a geração, ou por ela transfigurado não possui nem eira nem beira, nem lei. Nem verbo também. É ao mesmo tempo expulso, negado e reduzido ao silêncio. Não somente não existe, como não deve existir e à menor manifestação fá-lo-ão desaparecer.” (FOUCAULT, p.8, 1998).

Por que o nosso comportamento sexual está para nós como objeto de preocupação moral, de um certo cuidado ético tão intenso? É essa reflexão que conduz Foucalt em O uso dos prazeres, uma questão que está para além de uma interdição geral da sexualidade, “ocorrendo frequentemente que a preocupação moral seja forte, lá onde precisamente não há obrigação, nem proibição.(FOUCAULT, p.14, 1998). Esse movimento parte do sujeito, do sujeito desejante, que relaciona essa problematização das condutas sexuais a um conjunto de práticas referidas por Foucault como artes da existência”, ou ainda, “técnicas de si”: “Deve-se entender, com isso, práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens [...] procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo.” (FOUCAULT, p.15, 1998).
Foucault parte do princípio de que uma hipótese repressiva das interdições, não seria por acaso, o único fator de problematização moral do comportamento sexual, levanta para tanto, uma genealogia do desejo, ou, se preferir, do sujeito desejante: é a proposta de uma hermenêutica do desejo, que “busca analisar as práticas pelas quais os indivíduos foram levados a prestar atenção a eles próprios,[...] estabelecendo de si para si uma relação que permite descobrir no desejo a verdade de seu ser, seja ela natural ou decaída.” ( FOUCAULT, p.11, 1998).
Foucault dá a chance de colocar a sexualidade no campo de uma experiência do sujeito capaz de inventar-se a si mesmo: “se entendermos por experiência, a correlação numa cultura entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade.”(FOUCAULT, p.11, 1998). Em O cuidado de si Foucault dá ao sujeito a necessidade de se conduzir segundo sua própria sexualidade: “A Moral sexual exige, ainda e sempre, que o individuo se sujeite a uma certa arte de viver que defina os critérios estéticos e éticos da existência.” (FOUCAULT, p. 72, 1998).
Em A hermenêutica do sujeito curso ministrado em Collège de France entre 1981e 1982, tem como pontos principais a problematização moral das práticas e prazeres sexuais na antiguidade os aphrodísia, e como contraponto põe a moral judaico-cristã, que é a base da moral sexual da sociedade ocidental moderna. Foucault se muni de um termo bastante rico das sociedades antigas Epiméleia heautou, traduzida pelos latinos como cuidado de si mesmo.ocupar-se com si, preocupar-se com si etc.” Ele ocupa-se a partir daí de traçar a relação entre a prescrição délfica gnôthi seautón (o “conhece-te a ti mesmo”), e o cuidado de si. As referidas “técnicas de si”, que na antiguidade guiam ao encontro da virtude perdem força e autonomia, quando ao serem integradas ao cristianismo e depois ao longo do tempo, quando submetidas às instituições educativas, médicas e psicológicas, que transferem o cuidado que se deve ter consigo mesmo, por um cuidado que se deve ter com o próprio corpo, talvez obedecendo ao mesmo uso que se faz hoje da palavra estética.
Da amizade pode-se dizer que ela foi sofrendo alterações, já em alguns filósofos antigos vemos as prescrições das condutas sexuais dirigidas às relações heterossexuais na conjugalidade, a partir do cristianismo essa posição toma mais força, podemos ver hoje o impacto normatização das relações sexuais. A amizade foi sendo restringida aos poucos das condutas socialmente aceitas, até enfim, ser banida totalmente dos modos possíveis de se conduzir a vida. Sobre esse aspecto podemos evocar ainda um outro Foucault, aquele que desloca o tema da amizade da antiguidade para um tempo mais próximo ao nosso, em entrevista publicada no ano de 1981, Foucault fala ao jornal Gai Pied, já no inicio da entrevista, sobre “o movimento homossexual ter mais necessidade hoje de uma arte de viver, do que de uma ciência ou um conhecimento científico (ou pseudocientífico) do que é a sexualidade.” (FOUCAULT, p.260, 2004). Foucault segue, e dá a sexualidade um status privilegiado, a partir do conceito de desejo, a possibilidade de uma vida criativa, um fazer-se, um construir-se, de modo a produzir uma obra:
A sexualidade faz parte de nossa conduta. Ela faz parte da liberdade em nosso usufruto deste mundo. A liberdade é algo que nós mesmos criamos — ela é nossa própria criação, ou melhor, ela não é a descoberta de um aspecto secreto de nosso desejo. Nós devemos compreender que, com nossos desejos, por meio deles, instauram-se novas formas de relações, novas formas de amor e novas formas de criação. O sexo não é uma fatalidade; ele é uma possibilidade de aceder a uma vida criativa .” (FOUCAULT, p.260, 2004).


Nesse sentido é possível afirmar, ainda nessa fala de Foucault, que a liberação sexual é ponto de formação da obra de arte, da criação de novos modos de vida, é nesse ponto e do espaço de um estilo de vida homossexual, que essa liberação vem a ser potência criativa:


Forçosamente constatamos que a sexualidade tal qual a conhecemos hoje, torna-se uma das fontes mais produtivas de nossa sociedade e de nosso ser. Eu penso que deveríamos compreender a sexualidade num outro sentido: o mundo considera que a sexualidade constitui o segredo da vida cultural criadora; ela é mais um processo que se inscreve na necessidade, para nós hoje, de criar uma nova vida cultural, sob a condução de nossas escolhas sexuais” (FOUCAULT, p. 261, 2004).


Devemos nos lembrar sobre a liberação sexual decorrente dos anos 60, que desde a descoberta do vírus HIV nos anos 80 houve um retrocesso das conquistas geradas nesse período de revolução sexual, a epidemia que logo foi associada ao estilo de vida gay gerou retrocessos morais no imaginário coletivo: “A epidemia mudou não apenas o cenário da época, mas também impulsionou mudanças culturais que sepultaram as – hoje sabemos – frágeis conquistas da então chamada Revolução Sexual.” (MISKOLCI, p.47, 2011). Muito similar ao processo ocorrido no século XIX com o progressivo crescimento de casos de sífilis, homossexuais assim como prostitutas passam a “concentrar em si” todas as ameaças que pesam sobre o corpo, a degenerescência e a regressão, essa aproximação entre doenças sexualmente transmissíveis e personagens marginais da sociedade, tanto no século XIX como no século XX altera o olhar sobre os corpos e marca a história dos corpos desejados, aproximando o prazer à morte e reafirmando o rebaixamento de corpos que já se encontravam marginais.

Com a AIDS houve um retrocesso do processo de despatologização das identidades sexuais, um impulso na marginalização dessas identidades decaídas, onde existe todo um problema em torno das sexualidades que possam (a partir de uma “imoralidade”) representar riscos à saúde pública.Os homossexuais arcaram com o estigma da AIDS, prostitutas e os michês receberam atenção dos órgãos públicos, os homossexuais e ai se incluem os michês, (a partir de uma conduta homossexual) foram transcritos como sinônimos de devassidão, peste e promiscuidade venérea.

[…] No Brasil, algo diverso ocorreu. Em meio ao processo de redemocratização do país, o então movimento homossexual brasileiro (MHB) conseguiu estabelecer um diálogo com o Estado na criação daquele que talvez seja o melhor programa assistencial de aids do mundo, resultando em uma situação invejável por outros contextos nacionais, mas também marcada por cooptação.” (MISKOLCI, p.49, 2011).


A AIDS reconfigurou as relações de respeitabilidade sexual e por tanto, dos corpos desejados, e funcionou como radicalizador da imagem do aidético, a amizade foi novamente banida das relações aceitas, a imagem do homossexual ganha novo aspecto aberrante e por fim, o sexo que já começava a se liberar, rompendo com o estigma do matrimônio volta a ser encarcerado. A liberação sexual deixa de ser gradual e passa a ser reprimida, é por que “reside na liberação sexual um risco à saúde pública”:

Neste novo contexto, o dispositivo histórico da sexualidade passou por uma inflexão que reforçou a imposição da heteronormatividade, um conjunto de instituições, estruturas de compreensão e orientação prática que se apoiam na heterossexualidade mantendo sua hegemonia por meio da subalternização de outras sexualidades, às quais impõe seu modelo.[...] A proposta foucaultiana de uma estética da existência ganha novos elementos e exige refletir sobre as promessas e os dilemas da relação entre subjetividade e ética na sociedade contemporânea.” (MISKOLCI, p.50, 2011).

Após as mudanças decorridas da AIDS e todos os seus retrocessos, já conseguimos conviver com a doença, a rotina sexual mudou para todos e gira em torno desse cuidado com o próprio corpo, após a desmitificação da doença, todos sabem que o HIV não decorre de um estilo de vida homossexual. Porém vale dizer: o corpo homossexual ainda é evidentemente associado à promiscuidade venérea e à baixeza que perturba a masculinidade, o rebaixamento da virilidade, tal como a figura da travesti e da transexual, que hoje se descolam do status homossexual, mas que tal como este, renunciam voluntariamente ao seu papel viril. Nos faz pensar ainda, qual o aspecto moral do corpo que abre mão de sua virilidade, dispondo-se como objeto de outro homem, e por vezes renunciando à estética viril?
A antiguidade tratou da virtude na amizade, mas condenou também o prazer sexual entre dois homens, àquele cuidado de si, aquelas referidas práticas do cuidado de si mesmo que conferiam à alma um local privilegiado, foram modificadas e passaram a dar ao corpo um lugar mais importante que destinado a alma, a medicina super valorizou o sexo, modificou à sua maneira as dietéticas, e teve grande contribuição nessa modificação do referido cuidado de si, “O face-a-face consigo se tornou um face-a-face com um corpo em relação ao qual não podemos tomar distância alguma.” (MICHAUD, p.554, 2009). O século XIX desenvolveu uma teoria geral do sexo e introjetou na história da sexualidade a vontade de saber sobre o “segredo essencial” do sexo, e por fim o corpo vem tomar esse lugar primeiro na constituição do sujeito e nos seus modos de vida. A virtude estóica pautada na saúde da alma abre espaço para o corpo na experiência sexual moderna, é através dele que devemos zelar por nossa vida, é ele nossa força de trabalho e também nossa grande verdade, nosso objeto de arte e de desejo. Focault defende que nossa resistência deve partir dos corpos e dos prazeres e não do sexo-desejo. Ao fim de A vontade de saber Foucault dizia que o sexo se tornou mais importante que a alma, ou até mesmo que a própria vida, Yves Michaud diz que é o corpo quem hoje ocupa esse espaço:“Estamos doravante diretamente diante do corpo e do sexo […] onde havia consciências, almas, fantasias, e desejo, só resta um corpo com suas marcas[...]: o corpo se tornou mais importante que nossa alma- tornou-se mais importante que nossa vida.” (MICHAUD, p. 564-565, 2009).



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